Como o movimento death-positive mudou minha vida
O movimento death-positive é um dos assuntos que mais tem me atraído ultimamente. No passado, as pessoas sempre duvidaram ou se surpreenderam quando eu dizia que não tinha medo algum de morrer. É claro que essa falta de medo mudou drasticamente quando tive filhos, mas curiosamente, foi a maternidade que me preparou para morrer – e enxergar a morte em tudo o que eu vivencio.
Minha primeira lição de vida sobre a morte aconteceu quando criei vida. A segunda teve toques quase sobrenaturais e a terceira veio com o atual curso de necropsia que estou fazendo. Vem comigo.
Maternidade x morte
Só mães conhecem a sensação de completo desespero, angústia e exaustão do puerpério. Antes que algum pai enlouqueça comigo e me xingue, deixe-me explicar: não estou falando do trabalho e da canseira física e psicológica apenas. Isso, um bom pai conhece intimamente, também. O que os pais não conhecem é a pressão que só as mulheres sentem para serem excelentes mães. Isso podemos ver em qualquer conversa com parentes, pediatras e até em memes (nossa, o cabelinho punk só pode ser obra do papai — como se mães não tivessem o direito de zoar um pouco com a cria ou de serem bobonas às vezes).
O papai pode errar. Afinal, ele é um cara se adaptando a uma nova realidade. Uma mulher, não: ela nasceu para isso, é instintivo e há 8 bilhões de pessoas lá fora prontas para julgá-la. Nessas noites em que o bebê já mamou por horas, você se sente um lixo, ele não dorme e você percebe em algum lugar íntimo que está completamente sozinha no mundo, não importa o quanto o pai da criança seja parceiro, a depressão fica à espreita, pronta para nos subjugar quando menos esperamos. O pior – não podemos nem conversar sobre isso. Não podemos sentir nada além de uma profunda alegria e sensação de plenitude com a maternidade. E esse tabu contribui para a sensação de solidão de uma mulher no puerpério.
Foi num momento desses (três da manhã, meu primogênito aos berros com cólicas, eu sem dormir há meses e com peitos vazando leite) que eu refleti sobre algo que havia lido em Mulheres Que Correm com Lobos, da psicanalista Clarissa Pinkola Estés.
“Às vezes a pessoa que está fugindo na natureza Vida/Morte/Vida insiste em pensar que o amor é sempre positivo. Mas o amor pleno é uma série de mortes e renascimentos. Abrimos mão de uma fase, de um aspecto do amor e entramos em outro. A paixão morre e volta. A dor é afugentada, mas torna a aparecer. Amar significa abraçar e ao mesmo tempo tolerar muitos finais, e muitos, muitos começos – tudo no mesmo relacionamento.”
Quando passei a enxergar a morte de cada fase da minha vida, de cada viagem, de cada projeto, de cada momento ruim (e os bons!), tudo mudou. De repente aquele bebê chorando no meu ombro dolorido ficou mais leve. Eu sabia que deveria fechar os olhos e aceitar aquele peso, aquele choro, a angústia compartilhada. Eu deveria abraça-lo e dimensionar o quanto era pequeno, o quanto era precioso para mim. Aquela fase passaria rápido, e pelo resto da minha vida eu sentiria saudades – aquele tipo besta de nostalgia por alguma coisa só porque ela fez parte da sua vida – até do choro, e principalmente daquela conexão, daquela dependência que tínhamos um do outro. A tortura tornou-se tolerável e até gostosa. E isso também serviu para as coisas boas: a plena consciência do fim inevitável do momento bom me compelia a aproveitá-lo ao máximo. E assim, a morte à espreita, a morte como a quarta face da deusa, a morte como o fim de todos os ciclos para que o renascimento seja possível, a morte como o inverno que eventualmente trará a primavera, me salvou.
Eu realmente acredito que poucas experiências na vida sejam realmente sobrenaturais. Eu acho que dar à luz seja uma delas. Tive a sorte de ter um parto natural depois de duas cesarianas e me lembro de cada detalhe dele. Lembro-me da força que senti, que vinha de dentro de mim mas também de uma fonte externa, antiga: uma linhagem de mulheres parindo a próxima mulher da família. A dor, o sangue, o calor, o transe, aquela sensação de ser transportada para outro lugar. Então o choro e um bebê quentinho e molhado em seus braços e a sensação de “puta merda, que coisa incrível!”. E qual será a próxima experiência sobrenatural, fora do seu controle, totalmente natural, nova e assustadora? A morte.
O Corvo
Uma bela noite, comecei a sonhar com corvos.
A cada três, quatro dias eles rondavam meus sonhos. No mais nítido deles eu caminhava por um casarão, um corvo gigante pousado no meu ombro direito.
E não parou por aí. Aonde eu ia, eu via corvos. Estava numa livraria e um livro caiu no meu colo: Os Garotos Corvos. Eu via corvos em todos os filmes, pôsteres, camisetas que encontrava. Lembrei que em muitas culturas, o corvo é um símbolo da morte. E pensando em levar a morte comigo aonde quer que eu fosse, decidi tatuar um corvo no meu pé direito. Durante a tatuagem, a rádio começou a tocar “Burn”, do The Cure, trilha sonora de um dos filmes que mais marcou minha adolescência: O Corvo.
Dois corpos apodrecendo numa praia
Conheci o movimento death-positive na obra de Caitlin Doughty e ele fez todo o sentido para mim. Basicamente o movimento death-positive encoraja as pessoas a conversarem de forma aberta sobre a morte, os mortos, o processo de morrer. Precisamos compartilhar com nossos entes queridos o que queremos que seja feito com nossos corpos após a morte. Devemos nos preparar para ela, abraçá-la como parte natural da vida. Além disso, toda a nossa prática em relação a preparar corpos, velar os mortos e os enterrar precisa mudar. A pressa absurda com a qual enterramos nossos mortos impede a vivência plena e necessária do luto.
Lembro-me de me sentir atordoada no velório da minha mãe. Ela havia morrido doze horas antes, em São Paulo, de mãos dadas comigo. De repente eu não havia dormido, comido, nem tomado banho e já estava no velório em Santos, abraçando pessoas com olheiras profundas, roupas sujas que havia usado no hospital quando ela partiu, cabelos desgrenhados. Eu ainda não havia dimensionado a morte dela. Eu nem sabia direito o que estava acontecendo e precisei assinar papéis, tomar decisões e pagar um monte de taxas. Como Caitlin aponta em Confissões do Crematório: a morte virou uma indústria. Não temos mais tempo para nos despedir.
O livro A Beginner’s Guide to the End, de B.J Miller e Shoshana Berger é quase um guia para o luto. Nele, os autores apontam que há uma mudança significativa dos entes queridos processarem o luto quando a casa do falecido está em ordem. Ou seja, o processo de organizar suas coisas antes de morrer – doar a maior parte, separar itens pessoais de valor emocional e monetário e decidir quem irá herdá-los – não só faz bem para a pessoa que vai morrer em breve, mas também para quem fica para trás. Também é uma oportunidade para poupar nossos familiares de situações constrangedoras. Um colega meu me contou sobre um homem respeitadíssimo e de sucesso que ele conhecia, que enfartou subitamente e partiu para outro plano (ou apenas para debaixo da terra, quem pode ter certeza?). A família estava limpando suas coisas e encontrou um consolo gigante. Não é pecado se divertir sozinho, mas também não é algo que seus filhos conseguiram esquecer facilmente (quantos tabus!). Claro que nem sempre podemos nos preparar para a morte por não termos certeza de quando vamos morrer. E por isso mesmo é bom ter essas conversas, desde já.
Outra coisa interessante no livro é a constatação de alguns agentes funerários de que quando as pessoas têm tempo de se despedir, limpar o corpo e cuidar do ente querido, elas reagem de forma muito mais tranquila à morte. A menos que o morto tenha uma doença contagiosa, ele não é tão nocivo aos outros quanto querem nos fazer acreditar. Sim, corpos liberam gases e excrementos, sim, eles entram em decomposição. Mas há tempo para nos despedirmos.
Outro livro que influenciou meu ponto de vista sobre a morte infelizmente também não foi traduzido ainda: Being Dead, do Jim Grace. Esse romance bem escrito fala sobre um casal que morre durante um encontro romântico numa praia deserta. Pelos próximos dias, os cadáveres entram em decomposição. A narrativa vai e volta no tempo, tecendo momentos da vida do casal - casamento, carreira e sexualidade - com os detalhes do que está acontecendo com seus corpos abandonados na praia. É um tango literário entre o belo e o grotesco. Com o final de tudo tão escancarado, fica impossível não enxergar beleza até nos momentos mais triviais. E não estou só falando do livro, como das nossas vidas, também.
Filmes para entrar no clima:
"Flatliners" (o original, disponível no Netflix)
"O Corvo"
"Antes de Partir"
"Encontro Marcado"
"Um Visto para o Céu" (mega recomendado)
No próximo post vou falar sobre meu curso de necropsia e abordar a segunda parte da minha reflexão:
Death-positive: É possível ser positivo em relação à morte sem ser negativo em relação à vida? Abraçar a morte poder ser libertador, mas é preciso cautela.
Comments